Há uma inclinação anarquista em respeitar acordos tácitos, que são aqueles realizados sem comprovantes escritos ou falados, os que ocorrem através do entendimento mútuo sobre o comportamento a ser adotado frente a determinada situação. A prática anarquista em respeitar acordos formais também existe. Ambos comportamentos derivam do assunto abordado no texto anterior sobre respeito mútuo. Um acordo é respeitado não em função de sua formalidade, burocracia ou possibilidade de punição, mas, frente ao respeito que existe em relação às partes que tomaram parte no acordo, dedicando tempo e construção coletiva de ideias para que tal pacto fosse firmado. O que não quer dizer que anarquistas não entendem a importância em alterar regras a partir da revisão coletiva de acordos na medida que novas necessidades se apresentam com o passar do tempo. Isso não significa ainda que a quebra de acordo é bem vinda. Novos acordos devem ser propostos e a partir de debate suficiente, decidindo-se coletivamente por manter o acordo inicial ou firmar novo acordo. Esses tópicos serão abordados em textos adiante. Sobre o respeito à acordos, há um empenho colocado na continuidade, reconhecendo que o trabalho passado é também enriquecido quando dele deriva um futuro, ações que o estendem no tempo. Desperdício de tempo é algo extremamente anti-estratégico e o anarquismo é estratégia.
A ação conjunta que deriva de reflexão intensa e extensa tende a ser mais consistente do que aquela sempre espontânea – ainda que a espontaneidade seja também elemento importante dentro de um método e de uma estratégia – e do que aquela planejada, executada, mas, sem os devidos processos de formação, reflexão, revisão e avaliação. Reflexões promovem o destrinchar de uma ideia, esmiuçando seus elementos, testando-os, confrontando-os com outras ideias. Acordos sólidos apenas podem vir de processos intensos e extensos de reflexão coletiva, seja o acordo tático ou o acordo formal. O acordo tácito funciona bem entre pessoas que se conhecem bem, tendo convivido intensamente por longos períodos de tempo. Ainda assim, nesses casos, o não-dito pode falhar, desembocando na constatação de que a formalização de acordos é importante para que o reconhecimento mútuo sobre uma ação seja garantido, de forma a haver certeza nas ações presentes e futuras sobre certos contextos e situações. Nesse sentido, o dito, tanto durante o processo de reflexão e construção do acordo, como o dito do acordo, são importantes para que haja certeza sobre o caráter de nitidez e de expressão explícita.
É importante que haja certeza que o dito seja resultado de relações baseadas na assertividade, produzindo acordos que sejam reflexo da real vontade das envolvidas e envolvidos. A palavra é peça chave para a existência da política e todos os possíveis contextos construídos a partir dela.
Pessoas que tem afinidade com a convivência coletiva baseada na falta de acordos táticos, acordos formais ou mesmo regras – tais como as escritas em cartas de princípios – muitas vezes se utilizam do expediente da quebra constante de acordos, especialmente quando não há regras balizando as relações. Desrespeitam acordos argumentando de forma desonesta que estariam se utilizando da necessidade de revisão de ideias e práticas. Esta obviamente é importante para qualquer processo coletivo, como apontado acima, desde que realizada de forma ética, ou seja, passando por processos coletivos de revisão do acordo inicial e aprovação do novo acordo. Em texto adiante será abordado esse tópico em detalhes. Pessoas que não tem como valor o respeito mútuo frequentemente se dispõe a quebrar acordos, se impondo sobre processos coletivos a partir da justificativa de que seriam um direito delas não seguir adiante com nada que não mais queiram. É importante que exista liberdade para não mais se seguir com algo que não mais se concorda, porém, existem deveres firmados e é igualmente importante que se honrem compromissos, já que processos de empenho individual e coletivo são colocados nas ações definidas por tais acordos. A liberdade em poder sair de determinado processo é importante, porém, é igualmente importante que todo o trabalho coletivo empenhado a partir de tal acordo, seja concluído. Existem várias possibilidades a partir desse contexto, sendo um deles, a colocação de outra pessoa no lugar da pessoa discordante para que possa ser finalizada a ação em questão, no caso de uma ação específica. No caso de processos mais longos de convivência, quebras de acordos podem gerar um necessário afastamento das partes. O que não vale é a imposição da convivência a partir da quebra de acordo.
Pessoas que desrespeitam acordos desvalorizam o tempo de outras pessoas, que não consideram importante a partir de sua ótica individualista. Para elas existe apenas o “eu quero, eu posso”, sendo patente inclusive a incoerência daquelas que afirmam ser seu direito não cumprir acordos, já que a própria noção de direito é a noção da regra, da lei e do acordo coletivo.
Como afirmado em texto anterior, existem pessoas que se aproveitam da falta de regras explícitas para se impor. Em ambientes rígidos, constituídos a partir de regras explícitas e detalhadas, essas pessoas sabem como agir e dificilmente se oporão ao coletivo, pois, sabem inclusive que podem sofrer sanções. Muitas vezes tais ambientes são os mesmos que prometem algum tipo de ascensão na carreira, aumento do status social e são também organizados a partir de relações de poder e seus derivantes, como ações de humilhação, coerção, violência verbal, entre outras. É frequente que a mesma pessoa que desrespeita outras em espaços informais, siga estritamente as regras do jogo de espaços formais abusivos, não denunciando e muitas vezes sequer reprovando o contexto de abuso. Frequentemente admira pessoas abusivas, muitas vezes objetiva ser como elas, ou de fato, é como elas em espaços onde pode exercer o pequeno poder. Isso não quer dizer que a pessoa abusiva em certo espaço não possa ter sido vítima em outro espaço. Ainda assim é importante ressaltar que essa pessoa possui parâmetros diferentes para avaliar a realidade, se utilizando de diferentes regras individuais para balizar sua ação, muitas vezes em função de quais benefícios irá ganhar ao não questionar a violência que sofre em certos espaços (por exemplo, ao alcançar postos altos na hierarquia, poderá fazer o mesmo futuramente com pessoas mais abaixo na escala de poder) e em função de quais benefícios irá ganhar quando for abusiva com pessoas em espaços informais – como por exemplo a realização de alianças com outras pessoas abusivas nesses espaços, a possibilidade de projeção no grupo a partir do possível reconhecimento de quem foi mais forte e teve poder de decisão (ainda que tenha sido imposta) ou então a mera satisfação em violentar.
É possível que regras tenham sido inventadas justamente para coibir a ação de pessoas abusivas, já que, pessoas dispostas a respeitar podem conviver a partir de acordos tácitos mais facilmente. Se há a necessidade de lembrete sobre o respeito e os acordos, é porque provavelmente não há a atenção necessária de todas as pessoas envolvidas nos processos de convivência. Caso vivêssemos em sociedades onde existisse plena atenção aos processos coletivos, teríamos os acordos na ponta da língua e não na ponta do lápis.
Daniela Alvares Beskow
10 de fevereiro de 2022