Algumas pessoas confundem disponibilidade alheia com possibilidade para controlar e impor direcionamentos e desconsiderar propostas de forma constante e sistemática. Este é um dos choques de interpretação e ação entre pessoas anarquistas e pessoas que cultuam a autoridade.
Anarquistas não legitimam autoridade, ainda que a reconheçam na sociedade e cumpram os rituais à ela associados, especialmente nas formalidades exigidas pelo poder estatal ou em locais onde as pessoas se emocionam em excesso, onde manifestar descumprimento aos prenomes como senhor ou senhora, poderia causar muita comoção ou revolta, como por exemplo, em espaços religiosos ou em contato com pessoas muito idosas. Não se referir à alguém muito velho como “senhor”, no caso de uma conversa direta, não significa desrespeito, necessariamente, ainda que possa significar quando vindo de alguém mal intencionado. Respeito é relação e não linguagem formal que muitas vezes, está destituída da real valorização do outro. Não se referir à um médico ou médica enquanto “doutor”, em uma conversa direta, também não significa deslegitimação daquele título, e sim, aproximação entre duas pessoas a partir da horizontalidade. Muito médicos se sentem incomodados com essa relação não hierárquica porque sentem que está se propondo um questionamento de sua autoridade enquanto conhecimento da área, o que não é o caso completamente. Título não é sinônimo para conhecimento e conhecimento não precisa de títulos para se sustentar. Ou sabe ou não sabe e isso se demonstra nas ações de alguém. Muitos se escondem atrás de títulos, diplomas ou condecorações para afirmar o que não são, vivendo de imagens. Esse caso se aplica bastante na área acadêmica. A arrogância passa a ser o parâmetro das relações, ao invés da cooperação.
No caso das relações cotidianas, incluindo aquelas de ação conjunta seja em relações de trabalho, movimentos sociais ou momentos de lazer e amizade que exigem tomada de decisão coletiva, há também grande choque de interpretação entre pessoas que propõe a horizontalidade nas relações – especialmente se essas pessoas têm consciência de que essa é uma ferramenta metodológica – e pessoas que cultuam a autoridade cotidiana, inclusive aquela, embutida nos processos de voto que definem maiorias e minorias. Pessoas vaidosas, em especial, que se sentem engrandecidas ao serem elogiadas ou terem suas propostas validadas, ficando viciadas nesse reconhecimento de forma a bloquear qualquer tipo de ação conjunta que não concorde com elas o tempo todo, tendem a interpretar a disponibilidade de anarquistas ou pessoas que se afinam às ideias anarquistas – ainda que não a nomeiem enquanto tal – como uma possibilidade para praticar sua pequena autoridade, o também conhecido como pequeno poder. Confundem atitudes alheias como disponibilidade e não insistência em sua própria proposta – como forma de reconhecimento e valorização das propostas de outras pessoas como forma de impulsionar o trabalho coletivo (o famoso ceder) – em oportunidade para passar a impor ideias. O que as pessoas que cultuam autoridade não percebem é que a disponibilidade e o aceite, muitas vezes imediato de suas propostas, são ferramentas metodológicas de tomada de decisão, que tem o intuito de acelerar processos coletivos, valorizar a ideia (e não o título), mostrar que todas as pessoas podem ter boas ideias e que é possível colocá-las em prática, a partir do momento em que há reconhecimento e valorização coletiva. E que essas ferramentas metodológicas apenas funcionam quando há disposição mútua em aplicá-las, ou seja, todas as pessoas tem que aprender a ceder e a colocar ideias alheias em prática, ainda que não concordem com elas, porque o mundo não existe para concordar conosco o tempo todo e porque ideias discordantes ainda sim podem ser boas – até mesmo excelentes – ideias. É importante reconhecer que todas as pessoas em um grupo tem algo para contribuir e que impulsionar uma ideia alheia, mesmo nem sempre sendo a melhor ideia, pode ser uma forma de valorizar individualmente um integrante do grupo, o que pode ter um efeito positivo a longo prazo na medida em que a autoestima e autoconfiança dessa pessoa aumenta e contribui melhor para o coletivo futuramente. É uma estratégia – ou seja, um sistema de ações que prevê a manutenção de ações a longo prazo – e que compõe táticas e método. Pessoas que cultuam a autoridade: não confundam disponibilidade com uma oportunidade para dominar e arrebanhar pessoas a fim de reforçar sua própria imagem e ações despóticas. Disponibilidade não é um convite para controle, exploração da mão de obra alheia e muito menos para violência psicológica, que é o que se torna quando a insistência a longo prazo nas próprias propostas, a desvalorização do outro e da outra, e o descrédito completo em argumentos, visões e soluções que não os próprios, se torna uma constante. Pessoas que cultuam a autoridade interpretam pessoas com alta disponibilidade coletiva como pessoas com pouca autoestima ou pouca autoconfiança. Interpretam estratégia como falta de estratégia. São pessoas que, essas sim, na sua autoestima comprometida, precisam pisar em outras ao seu redor de forma a se sentirem melhor. Se tornam disfuncionais quando não tem tais pessoas ao seu dispor, que interpretam com serviçais ao invés de potências, sujeitos para contribuir e tecer coletivamente ideias e ações. A vítima perfeita para uma pessoa que cultua a autoridade é a pessoa que se dispõe ao coletivo. Pessoas que cultuam a autoridade tendem a minar projetos coletivos, que utilizam frequentemente como forma de acessar sua própria imagem individual que deve ser espelhada de forma idêntica continuamente no conjunto. Confundem o ceder de outras pessoas, com inexistência de opiniões alheias próprias. E nesse confundir e no estabelecimento de relações baseadas em lógicas egoístas e narcisistas, sabotam a cooperação, além de desperdiçar energia coletiva e gerar contínuos transtornos individuais e coletivos. Há um choque de interpretação advindo não apenas da falta de escuta e observação, mas, também de concepções diferentes de realidade. A cooperação genuína é possível e para ela é necessário muita disponibilidade de todas as partes. Disponibilidade não enquanto falta de propostas próprias, mas, enquanto construção de pontes de acessibilidade das várias ideias possíveis, valorização de cada indivíduo a partir do reconhecimento de que podem e devem colaborar para o coletivo e que o coletivo apenas é resultado das contribuições de todos e de todas, seja de forma concomitante ou alternada (revezamento), caso contrário é autoritarismo. A unidade na multiplicidade, uma das máximas do pensamento anarquista, um pensamento que preza pela reconhecimento mútuo do um e do múltiplo, da indivíduo e da sociedade, do singular e do comum.
Daniela Alvares Beskow
08 de fevereiro de 2022